Após
o 11 de setembro, o Afeganistão ganhou, em todo o mundo ocidental,
mais que um lugar no mapa do Extremo Oriente. Apesar
dos problemas políticos enfrentados desde os anos 1970 – guerra
civil, controle do exército, perseguição às mulheres, êxodo
urbano, fome e destruição das cidades –, o país só teve
destaque internacional depois de ser tornado culpado pelos ataques
terroristas aos EUA, em 2001.
Foi
assunto nas páginas dos jornais, objeto de estudo de disciplinas
escolares, entrou para o rol dos protagonistas de fatos históricos e
inspirou obras de ficção e não-ficção na mesma proporção de
acontecimentos como a Guerra do Vietnã.
Ambas
nasceram dos escombros de guerras, são adolescentes, perderam os
pais – que ou foram levados pela milícia ou morreram –, têm que
aprender sozinhas a lidar com a fome, o medo, a solidão, entraram
para a vida adulta precocemente e têm em seu diário um refúgio
para a pouca esperança que resta e para os sonhos que ainda não
morreram em meio a uma realidade tão áspera.
A
diferença entre os livros é que “Anne Frank” é um registro do
drama vivenciado pela protagonista durante a 2ª Guerra Mundial,
enquanto as tramas em torno de Parvana, de 11 anos, são apenas
baseadas em histórias reais que sua autora ouviu em campos de
refugiados na Rússia e no Paquistão.
No
primeiro livro, Parvana vive com os pais e três irmãos em um cômodo
de um prédio em ruínas porque a casa deles foi destruída por uma
bomba. Como o pai perdeu uma das pernas durante um ataque à escola
onde ele lecionava e a mãe não podia mais trabalhar por
determinação do Talibã, a família vivia dos trocados conseguidos
com a venda das poucas roupas, móveis e objetos fúteis que
guardavam e das cartas que o pai escrevia ou lia no mercado.
Uma
noite, em meio ao jantar da família, homens do Talibã invadem o
lugar e levam o pai de Parvana. A esposa, desesperada, sai à procura
do marido. Parvana fica e quando o pai volta, saem eles em busca da
família.
Parvana
veste-se como um menino para poder fazer pequenos trabalhos e não
ser levada pelo Talibã, e, de vila em vila, aprende com o pai outras
línguas, astrologia, geografia, história e matemática – enquanto
caminha, Parvana faz contas para o tempo passar mais rápido – e
descobre a importância dos livros – com alguns dos que conseguiram
esconder da milícia e levar na viagem.
O
segundo livro começa com o enterro do pai de Parvana. A garota é
acolhida por amigos dele, mas logo precisa fugir porque planejam
entregá-la ao Talibã.
Ela
retoma a busca pela mãe, mas o que encontra pelo caminho são uma
aldeia destruída onde há um único sobrevivente – um bebê de um
ano que ela decide levar na viagem -, uma caverna confortável habitada
por um garoto que também perdeu os pais e um campo minado em meio
ao qual uma garota e sua avó inválida vivem dos restos de animais e
pessoas atingidas pelas bombas subterrâneas.
Todos
juntos, as quatro crianças e a mulher, fazem do lugar um vale
encantado onde estão protegidos da fome, da dor e da solidão e onde
podem sonhar com o dia em que um adulto lembrará por eles de ferver
a água antes de beber, com o dia em que não terão mais de contar
as colheres de arroz para comer e poderão dormir sem o barulho das
bombas estourando nas vilas e sem o choro e o grito de dor das
pessoas.
Estes
momentos mostram como é relativa a importância de objetos como um
sabonete – aparentemente tão simples para quem os têm em
abundância – e como uma caverna pode se tornar um abrigo
confortável e seguro quando o que resta das casas são apenas
cinzas.
As
situações vividas por Parvana são, de fato, muito distantes da
realidade dos jovens brasileiros, mas poderíamos aproximar sua luta,
seu sofrimento – “Não
sinto que sou eu mesma. A parte de mim que eu era foi embora. Sou
apenas parte desta fila de gente. Não sobrou eu. Não sobrou nada”
– e sua capacidade de solidarizar-se com o outro em meio a tanta
desconfiança e traição aos dramas dos retirantes nordestinos que
Graciliano Ramos narra em “Vidas Secas” e Raquel de Queiroz em “O
Quinze”, entre tantos outros.
Trechos
de “A Outra Face”
“Ela
não ousava dizer isso em voz alta. O homem sentado ao lado de seu
pai não ia querer ouvir sua voz. Nem ele nem ninguém no mercado de
Cabul. Parvana estava lá só para ajudar o pai a andar até o
mercado e voltar para a casa depois do trabalho.”
“A
maioria dos afegãos não sabia ler nem escrever. Parvana era um das
poucas que tinham essa sorte. Seus pais tinham frequentado a
universidade e acreditavam na educação para todos, até para as
meninas.”
“Parvana
nunca estivera em uma prisão, mas alguns de seus parentes já tinham
sido presos. Todos os governos afegãos punham os inimigos na cadeia.
– Você não é afegão se não conhecer ninguém que já esteve
preso – dizia sua mãe.”
“ –
Nós somos afegãos.
Este é o nosso lugar. Se todas as pessoas cultas forem embora, quem
vai reconstruir o país? – dizia o pai de Parvana.”
Trechos
de “A Viagem de Parvana”
“ –
Algumas pessoas morrem
antes de morrer. Elas precisam de descanso e de um médico que saiba
cuidar delas, para voltarem a acreditar que algo melhor poderá
ocorrer. Evite essas pessoas, Parvana. Você não pode ajudá-las e
elas levarão sua esperança embora.”
“Ela
fez uma trouxa de alimentos, com farinha, arroz, cebolas, cenouras e
alguns damascos secos – era toda a comida que tinha achado. (...)
Por último, acrescentou um achado maravilhoso – um sabonete
embrulhado num papel estampado de rosas.”
“Parvana
havia visto, a distância, os turbantes negros dos soldados do
Talibã. Rumavam para a vila. Se a encontrassem e pensassem que era
um menino, poderiam forçá-la a entrar para o exército. Se a
encontrassem e descobrissem que era menina... Era horrível demais
para pensar.”
“Ali
dentro ela conseguia ficar em pé sem tocar o teto e podia esticar os
braços. Havia também espaço de sobra para bagagem. As rochas se
erguiam ao seu redor como um casulo, criando um abrigo aconchegante
onde ela poderia dormir em segurança...”
“Talvez
eu devesse deixar o bebê também. Esses meninos não são meus
irmãos. Não são problema meu.”
“É
duro recordar que costumávamos tomar sorvete e comer bolo. Era mesmo
eu? Devo ter sonhado. Não vivi essas coisas? Minha vida é pó e
pedra e meninos estúpidos e bebês magros e longos dias em busca de
minha mãe.”
“Talvez,
quando eu for velha e passar todo o tempo sonhando debaixo do sol,
serei capaz de acreditar nessas coisas de novo. Mas no que acreditar
até lá?”
“ –
Tem água lá, se
quiserem beber – disse o homem, apontando para um barril que
coletava água da chuva. – Se a água é boa para as galinhas é
boa para vocês.”
“Estou
cansada de ter de lembrar das coisas. Quero alguém para lembrar para
mim.”
“Tanques
são uma coisa normal. Bombas são uma coisa normal. Por que comer
não pode ser uma coisa normal, também?”
“De
um jeito ou de outro irei para a França em menos de vinte anos, e
esperarei por você no topo da Torre Eiffel.”