quarta-feira, 1 de julho de 2015

Viagens de uma menina em um país destruído pela guerra




Após o 11 de setembro, o Afeganistão ganhou, em todo o mundo ocidental, mais que um lugar no mapa do Extremo Oriente. Apesar dos problemas políticos enfrentados desde os anos 1970 – guerra civil, controle do exército, perseguição às mulheres, êxodo urbano, fome e destruição das cidades –, o país só teve destaque internacional depois de ser tornado culpado pelos ataques terroristas aos EUA, em 2001.

Foi assunto nas páginas dos jornais, objeto de estudo de disciplinas escolares, entrou para o rol dos protagonistas de fatos históricos e inspirou obras de ficção e não-ficção na mesma proporção de acontecimentos como a Guerra do Vietnã.

Em meio a tudo o que se falou sobre o Afeganistão, a escritora canadense Deborah Ellis merece destaque. Ela desponta como a criadora de histórias e personagem tais quais aquelas que outras grandes tragédias conseguiram produzir e imortalizar. A garota Parvana dos livros “A Outra Face” (Ática) e “A Viagem de Parvana” (Ática), que ela construiu para falar de abandono, preconceito e esperança no Afeganistão dominado pelo Talibã e destruído por bombas pode ser comparada com outra personagem-ícone da literatura juvenil, Anne Frank, de “O Diário de Anne Frank” (Record).

Ambas nasceram dos escombros de guerras, são adolescentes, perderam os pais – que ou foram levados pela milícia ou morreram –, têm que aprender sozinhas a lidar com a fome, o medo, a solidão, entraram para a vida adulta precocemente e têm em seu diário um refúgio para a pouca esperança que resta e para os sonhos que ainda não morreram em meio a uma realidade tão áspera.

A diferença entre os livros é que “Anne Frank” é um registro do drama vivenciado pela protagonista durante a 2ª Guerra Mundial, enquanto as tramas em torno de Parvana, de 11 anos, são apenas baseadas em histórias reais que sua autora ouviu em campos de refugiados na Rússia e no Paquistão.

No primeiro livro, Parvana vive com os pais e três irmãos em um cômodo de um prédio em ruínas porque a casa deles foi destruída por uma bomba. Como o pai perdeu uma das pernas durante um ataque à escola onde ele lecionava e a mãe não podia mais trabalhar por determinação do Talibã, a família vivia dos trocados conseguidos com a venda das poucas roupas, móveis e objetos fúteis que guardavam e das cartas que o pai escrevia ou lia no mercado.

Uma noite, em meio ao jantar da família, homens do Talibã invadem o lugar e levam o pai de Parvana. A esposa, desesperada, sai à procura do marido. Parvana fica e quando o pai volta, saem eles em busca da família.

Parvana veste-se como um menino para poder fazer pequenos trabalhos e não ser levada pelo Talibã, e, de vila em vila, aprende com o pai outras línguas, astrologia, geografia, história e matemática – enquanto caminha, Parvana faz contas para o tempo passar mais rápido – e descobre a importância dos livros – com alguns dos que conseguiram esconder da milícia e levar na viagem.




O segundo livro começa com o enterro do pai de Parvana. A garota é acolhida por amigos dele, mas logo precisa fugir porque planejam entregá-la ao Talibã.

Ela retoma a busca pela mãe, mas o que encontra pelo caminho são uma aldeia destruída onde há um único sobrevivente – um bebê de um ano que ela decide levar na viagem -, uma caverna confortável habitada por um garoto que também perdeu os pais e um campo minado em meio ao qual uma garota e sua avó inválida vivem dos restos de animais e pessoas atingidas pelas bombas subterrâneas.

Todos juntos, as quatro crianças e a mulher, fazem do lugar um vale encantado onde estão protegidos da fome, da dor e da solidão e onde podem sonhar com o dia em que um adulto lembrará por eles de ferver a água antes de beber, com o dia em que não terão mais de contar as colheres de arroz para comer e poderão dormir sem o barulho das bombas estourando nas vilas e sem o choro e o grito de dor das pessoas.

Estes momentos mostram como é relativa a importância de objetos como um sabonete – aparentemente tão simples para quem os têm em abundância – e como uma caverna pode se tornar um abrigo confortável e seguro quando o que resta das casas são apenas cinzas.

As situações vividas por Parvana são, de fato, muito distantes da realidade dos jovens brasileiros, mas poderíamos aproximar sua luta, seu sofrimento – “Não sinto que sou eu mesma. A parte de mim que eu era foi embora. Sou apenas parte desta fila de gente. Não sobrou eu. Não sobrou nada” – e sua capacidade de solidarizar-se com o outro em meio a tanta desconfiança e traição aos dramas dos retirantes nordestinos que Graciliano Ramos narra em “Vidas Secas” e Raquel de Queiroz em “O Quinze”, entre tantos outros.


Trechos de “A Outra Face”
Ela não ousava dizer isso em voz alta. O homem sentado ao lado de seu pai não ia querer ouvir sua voz. Nem ele nem ninguém no mercado de Cabul. Parvana estava lá só para ajudar o pai a andar até o mercado e voltar para a casa depois do trabalho.”

A maioria dos afegãos não sabia ler nem escrever. Parvana era um das poucas que tinham essa sorte. Seus pais tinham frequentado a universidade e acreditavam na educação para todos, até para as meninas.”

Parvana nunca estivera em uma prisão, mas alguns de seus parentes já tinham sido presos. Todos os governos afegãos punham os inimigos na cadeia. – Você não é afegão se não conhecer ninguém que já esteve preso – dizia sua mãe.”

“ – Nós somos afegãos. Este é o nosso lugar. Se todas as pessoas cultas forem embora, quem vai reconstruir o país? – dizia o pai de Parvana.”



Trechos de “A Viagem de Parvana”

“ – Algumas pessoas morrem antes de morrer. Elas precisam de descanso e de um médico que saiba cuidar delas, para voltarem a acreditar que algo melhor poderá ocorrer. Evite essas pessoas, Parvana. Você não pode ajudá-las e elas levarão sua esperança embora.”

Ela fez uma trouxa de alimentos, com farinha, arroz, cebolas, cenouras e alguns damascos secos – era toda a comida que tinha achado. (...) Por último, acrescentou um achado maravilhoso – um sabonete embrulhado num papel estampado de rosas.”

Parvana havia visto, a distância, os turbantes negros dos soldados do Talibã. Rumavam para a vila. Se a encontrassem e pensassem que era um menino, poderiam forçá-la a entrar para o exército. Se a encontrassem e descobrissem que era menina... Era horrível demais para pensar.”

Ali dentro ela conseguia ficar em pé sem tocar o teto e podia esticar os braços. Havia também espaço de sobra para bagagem. As rochas se erguiam ao seu redor como um casulo, criando um abrigo aconchegante onde ela poderia dormir em segurança...”

Talvez eu devesse deixar o bebê também. Esses meninos não são meus irmãos. Não são problema meu.”

É duro recordar que costumávamos tomar sorvete e comer bolo. Era mesmo eu? Devo ter sonhado. Não vivi essas coisas? Minha vida é pó e pedra e meninos estúpidos e bebês magros e longos dias em busca de minha mãe.”

Talvez, quando eu for velha e passar todo o tempo sonhando debaixo do sol, serei capaz de acreditar nessas coisas de novo. Mas no que acreditar até lá?”

“ – Tem água lá, se quiserem beber – disse o homem, apontando para um barril que coletava água da chuva. – Se a água é boa para as galinhas é boa para vocês.”

Estou cansada de ter de lembrar das coisas. Quero alguém para lembrar para mim.”

Tanques são uma coisa normal. Bombas são uma coisa normal. Por que comer não pode ser uma coisa normal, também?”


De um jeito ou de outro irei para a França em menos de vinte anos, e esperarei por você no topo da Torre Eiffel.”


Nenhum comentário:

Postar um comentário