quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Queimando Vidas...

(O texto não é novo, mas as histórias continuam a se repetir, mesmo que os personagens sejam outros)


Quando vejo uma autoridade, especialmente da área da Saúde, como o ministro Padilha, falando à imprensa com toda a convicção que o crack não é uma epidemia no Brasil e que esta é uma droga social, tenho certeza de que este problema só pode piorar.
O discurso é sempre bonito e animador, mas a realidade de quem vive com os efeitos desta droga não tem outra definição além de marginal.

Poderia usar como argumentos contra o que dizem o fato de que uma em cada quatro cidades brasileiras está tomada pelo crack - é a principal droga nas biqueiras. 
Poderia dizer que a droga já chegou às cidades com menos de 20 mil habitantes.
Poderia dizer que toda família brasileira tem pelo menos um dependente químico e que hoje o vício está dividido entre o crack e o álcool. Em Araraquara, isso daria umas cinco mil pessoas.
Poderia argumentar que uma epidemia de dengue na mesma cidade se configura com 200 casos.
Mas vou usar a maior autoridade do crime no Estado de São Paulo para começar esse texto: o Primeiro Comando da Capital (PCC) não admite o uso de crack entre seus membros, nem dentro das cadeias porque a droga gera dívidas, as dívidas geram brigas, que geram mortes e vão desestabilizar a organização do sistema.
Uma pessoa capaz de dizer que o crack não é o monstro que estão pintando com certeza não tem um filho usuário da droga. O dia-a-dia do dependente químico e de quem convive com ele é uma luta sem fim. A adicção é uma doença que mata, mas mata lentamente, o usuário e sua família.
Pais, mães, filhos, irmãos, maridos, esposas adoecem junto. Primeiro, têm vergonha de que alguém saiba do seu problema. Mas uma mãe me disse: "todo mundo sabe, toda a cidade sabe, menos a gente, porque não quer admitir a verdade."
A família sente raiva, tanta a ponto de desejar a morte do adicto. Puf! Um dia ele some - como tantas outras vezes ele fez - mas não volta mais. E a gente vai viver em paz.
Foi o que aconteceu com uma mãe que não tentou impedir seu filho de sair de casa na noite de Natal, alucinado pela falta da droga. Mas ela só o reencontrou 15 dias depois, morto em uma vala do outro lado da cidade. Naquela noite, não foi só ela que não dormiu e chorou. Outras tantas mães pensaram que podiam ser suas próprias crias.

Foi o que aconteceu com um garoto de 18 anos, levado pela correnteza. Quando a água bateu na guia da calçada, ele não conseguiu se segurar porque seu cérebro estava queimando.

Sem saber que caminho tomar, a família se torna violenta. Pai e mãe se esquecem que geraram aquele moleque, se esquecem das lágrimas de alegria ao vê-lo pela primeira vez. São capazes de agredi-lo para ver se ele acorda e tudo muda. A única imagem que conseguem ver é de um ser acuado em um canto sujo, cheio de restos de plástico, fósforo, cigarros, latas de alumínio. Sem dormir, sem comer, roupas sem lavar, banho sem tomar. Alguém que não consegue pensar, não consegue agir, não consegue mudar.
Pôr um fim à vida do filho foi o limite de um pastor. Ele não aguentou. Porque as mazelas do vício não duram três, oito, dez meses. São anos de má conduta, falhas de caráter, pequenos furtos, mentiras, escapadas, abandono de escola, de emprego, relacionamentos duvidosos até o uso tornar a sua vida incontrolável. E só faz sentido fumar. Não uma. Porque uma nunca é suficiente. Na gíria dos recuperandos, uma é muito, mas mil é pouco.
Foram dias e noites em que não existia amor, família, filhos, trabalho, mulher. Tudo isso junto vale menos, bem menos que a droga. E o traficante é seu único amigo.
Para a família do viciado, também tem a fase do ignorar. Do não existir. A fase em que o outro não faz mais sentido ao teu lado, sua presença não interfere nem para o bem, nem para o mal. E você não quer nem saber se ele está vivendo ou morrendo.
Outro dia ouvi alguém dizer: ‘Conheço um cara que usou crack um ano e ninguém percebeu’. Eu conheço vários. Advogados, jornalistas, músicos, universitários, mecânicos, cortadores de cana, estudantes. Ninguém percebe porque não acredita que o seu amigo, filho, pai, marido, irmão é tão louco a ponto de se entregar a algo que se encontra no último degrau do submundo. Nem a lata cortada, a garrafa sem tampa, a faca queimada, os dedos rachados, o corpo rasgado são capazes de te convencer disso.
Conheço mulher que, no desespero de tirar o marido do vício, se ofereceu para usar com ele. ‘Quero saber se isso é tão bom como parece.’ Achou que ele a protegeria. Se enganou e caiu também. Passou a se prostituir para pagar o vício de ambos, enquanto ele assistia a essa cena degradante por demais do outro lado do muro. A história só mudou depois que ele quebrou o quadril dela em uma briga para ver quem ficava com a última dose. E cada um foi levado para uma comunidade terapêutica diferente. Nunca mais poderão viver juntos, em nome da sobriedade. 
Conheço uma mãe que perdeu a filha de 6 anos porque preferiu o cachimbo. O traficante levou a criança para a mata, a violentou, matou, picou e ninguém mais a olhou. A história comoveu os moradores, revoltou os vizinhos, mas a mãe, louca, nunca vai saber a dor de perder um filho porque o crack não vai deixar. Entre um estalo e outro, ela já esqueceu quem era a pequena.
Ouço coisas que me matam por dentro. Em uma discussão sobre reportagens, uma pessoa me disse que multa de trânsito é mais importante que a história da mãe que abandonou os filhos gêmeos recém-nascidos no hospital porque sua vida era na droga. Como se o dinheiro valesse mais que gente e como se a droga nunca fosse bater na porta dele junto com o carteiro. Talvez hoje, depois do caso da Cracolândia em São Paulo, ele tenha mudado de ideia. Dá mais mídia.
Mas pensar que as mazelas que o crack gera não têm importância só vale para quem financia o tráfico. Ou para quem nunca precisou sair do conforto da sua sala, do seu ar-condicionado no meio da noite, tomado pelo impulso de correr a cidade atrás de alguém que foi trabalhar pela manhã e não foi mais visto depois que recebeu seu salário.
Porque não teve de vasculhar um canavial atrás de um menino de 15 anos que fugiu da reabilitação porque a vontade do seu corpo de sentir a droga foi mais forte.
Porque nunca viu seu filho privado do uso quebrar toda a casa.
Porque não viu seu irmão voltar da rua só com uma calça velha que ninguém sabe de quem é. O tênis, a blusa de marca, a bermuda nova, o relógio, os óculos, tudo isso ficou com o traficante.
Porque não passou a noite acordado esperando o marido voltar, imaginando que ele poderia estar na casa da mãe ou no pronto socorro curando uma dor de cabeça, e não se drogando.
Porque não descobriu da pior maneira que o seu pai nunca vai ser o seu super-herói, pronto para te salvar de qualquer perigo e te acolher nos momentos de dor. Que ele vai estar distante toda vez que você precisar e vai, invariavelmente, ser o motivo do seu choro.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Bob Marley, o aniversariante do dia!

Inevitável para alguém que morou na praia, Bob Marley entrou na minha vida na adolescência e, desde então, fez parte de momentos muito importantes dela, ampliando sua participação também de acordo com aqueles que a envolviam, amigos e amores.
Hoje, Bob completaria 69 anos, mas por conta da religião rastafári se recusou a receber uma transfusão de sangue e morreu em decorrência de uma infecção no pé no início dos anos 80, quando eu ainda era uma criança.
Sua música atemporal vive em todo o mundo e, mais importante que isso, é renovada pela incrível herança genética deixada aos filhos músicos ativos, criativos e produtivos.
Meu querido e preferido Ky-Mani tive o prazer de ver ao vivo em Americana na Virada Cultural de dois anos atrás - quem disse que o Alckmin não me fez favor nenhum!! Um misto de realização e frustração porque parte do show, apesar de seus muitos discos autorais, foi de músicas do pai. Eu entendo, isso acontece com todos os irmãos, não tem como, é o legado que eles carregam. Mas eu ainda espero por um show com as músicas do gordinho, que tem mais de hip hop que de reggae.
Em homenagem ao querido Bob um vídeo dele e vídeos dos filhos, com minhas músicas preferidas de cada um deles!!
Salve!!












segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Os Três Mal-amados





Nos idos dos anos 90, prestes a fazer vestibular, descobri o escritor recifense João Cabral de Mello Neto e o adotei para sempre em minha vida. Pouco tempo depois, já na faculdade, encontrei Cordel do Fogo Encantado e me apaixonei por sua teatralidade, a relação com as relações africanas, a referência aos mitos, a associação à aridez (não só física, mas emocional e sentimental gerada por todo o resto), a mistura de ritmos lá do sertão de Pernambuco.
João Cabral já havia partido, a banda de Arco Verde se desfez há algum tempo, mas continuam dentro de mim, firmes e fortes essas preciosidades que a cultura pernambucana nos deu com um intervalo de 50, 60 anos.

Em um momento, eles ficam mais próximos, se encontraram sem interferências da geografia, que é pouca, ou do tempo, que é muito. No 
segundo CD do Cordel, "Palhaço do Circo Sem Futuro", um trecho de "Os Três Mal-amados", de João Cabral, vira música-poema-teatro do Cordel, com todo o seu amor, seu desamor, seu mau amor, seu novo amor...

O texto original foi publicado em 
"João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A., Rio de Janeiro, 1994, página 59, e o trecho usado na música foi tirado de uma fala do personagem Joaquim...

A quem interessar, um convite para o texto e para o vídeo.
Axé...
Os Três Mal-AmadosJoão Cabral de Melo Neto
Joaquim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.


Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.


O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.


O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.


O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.


O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Descobrindo Jorge de Lima

Em 2004, eu e Aline Quezada fomos para São Paulo na Bienal Internacional do Livro pelo jornal em que trabalhávamos, a Tribuna Impressa, de Araraquara. Não sei se podem imaginar, mas foi imensa minha alegria em andar por entre livros, livros e mais livros por mais de 12 horas sem parar.

Mais feliz fiquei ao sair dos stands das editoras onde estavam nossos amigos assessores de imprensa - que conhecíamos apenas por e-mail e telefone - com montanhas de livros que carregamos pelas ruas da feira. Em menos de três horas já não dava mais pra levar tudo na mão.

Em uma conversa com um dos assessores, Arthur Louback, na época na Scipione, ele comentou que, entre eles sempre se perguntavam que fim tinham os livros que eles mandavam para repórteres e editores de jornais e revistas.
Na Veja, segundo ele, existe uma biblioteca na redação. Mas muita coisa se perde porque, claro, recebem livro até de editora de Teerã.

Da minha parte, aqueles que me interessam lotam as prateleiras de casa. Os que não me interessavam, na época da conversa com o Arthur, eu dava aos companheiros de redação. Por um tempo, foram brindes de promoções do blog Paulo Coelho Não é Literatura!. 

Hoje, eles já não chegam mais com meu nome. Mas, com tanto livro que ganhei em dez anos, tem muita coisa que até hoje não li. Quando estou na frente do computador, esperando que ele faça alguma tarefa mais demorada, sempre pego um livro aleatoriamente e fico folheando. Foi assim que certo dia me deparei com "Poemas", de Jorge de Lima, da Editora Record.

Provavelmente, li alguns de seus poemas em outras ocasiões, mas certamente não havia me atentado para a história do autor e alguns dos textos que hoje fazem mais sentido pra mim. Separei dois - "Guerreiro" e "Xangô" - para compartilhar, mas na foto ainda é possível ler "Mulher Proletária".

Rapidamente, Jorge de Lima nasceu em União dos Palmares, em 23 de abril (Dia de São Jorge) de 1893. Da janela do sobrado em que morava, ele podia observar a Serra da Barriga, onde se deu toda a saga de Zumbi dos Palmares. Por isso, cresceu em meio a histórias sobre escravidão, luta, resistência, quilombos, além de lendas, bangüês, olarias.

Nas palavras de Jorge de Lima, "Todo o universo que descortinei então (...) tudo aquilo entrou pelos meus olhos deslumbrados de menino e nunca mais saiu de dentro de mim. Tanto assim que, muitos anos depois, já homem feito, foram esses os temas que fui buscar para alguns poemas da fase que poderia chamar ‘nordestina’ de minha poesia".
Jorge de Lima foi médico e seu consultório na Cinelândia, no Rio de Janeiro dos anos 30, foi ponto de encontro de escritores como Murilo Mendes, Graciliano Ramos e José Lins do Rego.




"Guerreiro"
E meu pai, vendo aquele dia 23 tão lindo
E tão verde aquele mês de abril,
E vendo seu primeiro filho,
Bendisse a Deus primeiro,
E depois foi à folhinha
Ver o nome do Santo que ali estava:
São Jorge!
E o guerreiro cresceu e foi vencer
Todos os dragões da vida,
E não vencendo
Cobriu com humildade do seu Santo
A derrota do guerreiro:
Senhor, tende piedade!


"Xangô"
Num sujo mocambo dos «Quatro Recantos»,
quimbundos, cafuzos, cabindas, mazombos
mandingam xangô.
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!
Dois feios calungas - oxalá e taió rodeados de contas no centro o Oxum!
Oxum! Oxalá! Ô! Ê!
Caboclos, mulatos, negrinhas membrudas
Aos tombos os quadris e as mamas bojudas
Retumbam o tantã...
Oxum! Oxalá! Ô! Ê!
Sinhô e Sinhá num méis ou dois méis se
Há de casa
Mano e mana! Credo manco!
No centro o Oxum!
Dois feios bonecos na rede bem bamba!
Ioiô e Iaiá!
Minhas almas
Santas benditas
Aquelas são
Do mesmo Senhor;
Todas duas
Todas três
Todas seis
E todas nove!
Santo Onofre
São Gurdim
São Pagão
Anjo Custódio
Moserrate
Amén
Oxum!
No sujo mocambo a dança batuca.
Recendo o fartum dos sangues cabindas.
Batendo com os pés, tremendo com as ancas,
Volteia sem roupas
Com o santo Oxum-Nila
A preta mais nova.
Oxum! Ô! Ê!
Redobram o tantã, incensam maconha!
Oxalá sorri...
E a preta mais nova com as pernas tremendo,
No crânio um zunzum,
No ventre um chamego
De cabra no cio... Ê! Ê!
Redobram o tantã.
Ogum taiá-iê!
Me pega ioiô!
O santo Ogum-Chila redobra o feitiço.
Oxalá sorri.
Os olhos da preta parecem dois rombos
Na pele retinta.
Mas chega o momento: Xangô sai do nicho
De contas redondas,
Se encarna no corpo dos negros fetiches...
A negra mais nova se esponja no chão.
Acode o mocambo,
Xangô tinha entrado no ventre bojudo,
Subira pro crânio da negra mais nova.
Um canto da sala,
Oxalá sorri.
Meu São Mangangá
Caculo
Pitomba
Gambá-marundu
Gurdim
Santo Onofre
Custódio
Ogum.
Minhas almas
Santas benditas
Aquelas são
Do mesmo Senhor
Todas duas
Todas três
Todas nove
O mal seja nela
São Marcos, São Manços
com o signo de Salomão
com Ogum-Chila na mão
com três cruzes no surrão
São Cosme! São Damião!
Credo
Oxum-Nila
Amém.