sábado, 1 de fevereiro de 2014

Descobrindo Jorge de Lima

Em 2004, eu e Aline Quezada fomos para São Paulo na Bienal Internacional do Livro pelo jornal em que trabalhávamos, a Tribuna Impressa, de Araraquara. Não sei se podem imaginar, mas foi imensa minha alegria em andar por entre livros, livros e mais livros por mais de 12 horas sem parar.

Mais feliz fiquei ao sair dos stands das editoras onde estavam nossos amigos assessores de imprensa - que conhecíamos apenas por e-mail e telefone - com montanhas de livros que carregamos pelas ruas da feira. Em menos de três horas já não dava mais pra levar tudo na mão.

Em uma conversa com um dos assessores, Arthur Louback, na época na Scipione, ele comentou que, entre eles sempre se perguntavam que fim tinham os livros que eles mandavam para repórteres e editores de jornais e revistas.
Na Veja, segundo ele, existe uma biblioteca na redação. Mas muita coisa se perde porque, claro, recebem livro até de editora de Teerã.

Da minha parte, aqueles que me interessam lotam as prateleiras de casa. Os que não me interessavam, na época da conversa com o Arthur, eu dava aos companheiros de redação. Por um tempo, foram brindes de promoções do blog Paulo Coelho Não é Literatura!. 

Hoje, eles já não chegam mais com meu nome. Mas, com tanto livro que ganhei em dez anos, tem muita coisa que até hoje não li. Quando estou na frente do computador, esperando que ele faça alguma tarefa mais demorada, sempre pego um livro aleatoriamente e fico folheando. Foi assim que certo dia me deparei com "Poemas", de Jorge de Lima, da Editora Record.

Provavelmente, li alguns de seus poemas em outras ocasiões, mas certamente não havia me atentado para a história do autor e alguns dos textos que hoje fazem mais sentido pra mim. Separei dois - "Guerreiro" e "Xangô" - para compartilhar, mas na foto ainda é possível ler "Mulher Proletária".

Rapidamente, Jorge de Lima nasceu em União dos Palmares, em 23 de abril (Dia de São Jorge) de 1893. Da janela do sobrado em que morava, ele podia observar a Serra da Barriga, onde se deu toda a saga de Zumbi dos Palmares. Por isso, cresceu em meio a histórias sobre escravidão, luta, resistência, quilombos, além de lendas, bangüês, olarias.

Nas palavras de Jorge de Lima, "Todo o universo que descortinei então (...) tudo aquilo entrou pelos meus olhos deslumbrados de menino e nunca mais saiu de dentro de mim. Tanto assim que, muitos anos depois, já homem feito, foram esses os temas que fui buscar para alguns poemas da fase que poderia chamar ‘nordestina’ de minha poesia".
Jorge de Lima foi médico e seu consultório na Cinelândia, no Rio de Janeiro dos anos 30, foi ponto de encontro de escritores como Murilo Mendes, Graciliano Ramos e José Lins do Rego.




"Guerreiro"
E meu pai, vendo aquele dia 23 tão lindo
E tão verde aquele mês de abril,
E vendo seu primeiro filho,
Bendisse a Deus primeiro,
E depois foi à folhinha
Ver o nome do Santo que ali estava:
São Jorge!
E o guerreiro cresceu e foi vencer
Todos os dragões da vida,
E não vencendo
Cobriu com humildade do seu Santo
A derrota do guerreiro:
Senhor, tende piedade!


"Xangô"
Num sujo mocambo dos «Quatro Recantos»,
quimbundos, cafuzos, cabindas, mazombos
mandingam xangô.
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!
Dois feios calungas - oxalá e taió rodeados de contas no centro o Oxum!
Oxum! Oxalá! Ô! Ê!
Caboclos, mulatos, negrinhas membrudas
Aos tombos os quadris e as mamas bojudas
Retumbam o tantã...
Oxum! Oxalá! Ô! Ê!
Sinhô e Sinhá num méis ou dois méis se
Há de casa
Mano e mana! Credo manco!
No centro o Oxum!
Dois feios bonecos na rede bem bamba!
Ioiô e Iaiá!
Minhas almas
Santas benditas
Aquelas são
Do mesmo Senhor;
Todas duas
Todas três
Todas seis
E todas nove!
Santo Onofre
São Gurdim
São Pagão
Anjo Custódio
Moserrate
Amén
Oxum!
No sujo mocambo a dança batuca.
Recendo o fartum dos sangues cabindas.
Batendo com os pés, tremendo com as ancas,
Volteia sem roupas
Com o santo Oxum-Nila
A preta mais nova.
Oxum! Ô! Ê!
Redobram o tantã, incensam maconha!
Oxalá sorri...
E a preta mais nova com as pernas tremendo,
No crânio um zunzum,
No ventre um chamego
De cabra no cio... Ê! Ê!
Redobram o tantã.
Ogum taiá-iê!
Me pega ioiô!
O santo Ogum-Chila redobra o feitiço.
Oxalá sorri.
Os olhos da preta parecem dois rombos
Na pele retinta.
Mas chega o momento: Xangô sai do nicho
De contas redondas,
Se encarna no corpo dos negros fetiches...
A negra mais nova se esponja no chão.
Acode o mocambo,
Xangô tinha entrado no ventre bojudo,
Subira pro crânio da negra mais nova.
Um canto da sala,
Oxalá sorri.
Meu São Mangangá
Caculo
Pitomba
Gambá-marundu
Gurdim
Santo Onofre
Custódio
Ogum.
Minhas almas
Santas benditas
Aquelas são
Do mesmo Senhor
Todas duas
Todas três
Todas nove
O mal seja nela
São Marcos, São Manços
com o signo de Salomão
com Ogum-Chila na mão
com três cruzes no surrão
São Cosme! São Damião!
Credo
Oxum-Nila
Amém.



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