sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Saramago e Eu

Um post de 23 de junho de 2010, um dia depois da morte de José Saramago

Gosto muito de dirigir. Em parte porque na maioria das vezes estou sozinha, sem o barulho do rádio que eu não tenho. Então, me perco em pensamentos. E esqueço do mundo.
Sexta-feira, quando voltava para a casa, à noite, tentando assimilar tudo o que aconteceu no meu dia estranho fiquei me perguntando porque estava tão abalada com a morte de José Saramago.
A uma das pessoas que me perguntaram porque estava tão triste disse que ele era parte da minha família, parte da minha vida.
E era. Por causa dessa coisa fantástica que só a literatura, a música e as artes em geral podem fazer por nós, que é colocar lado a lado, por meio de ideias, gente que nunca se viu, gente que nunca vai se ver, mas que vai servir de estímulo e referência para o outro, de várias maneiras.
Se Saramago não era parte da minha vida, era o que então?
Em 1996, quando eu tentava entender todas as transformações pelas quais passava a minha casa,, a mudança dos meus pais, a rotina em um lar que não era o meu, não ter lugar que me pertencesse, a distância do meu pai e ainda vivia toda a expectativa do primeiro vestibular, de ter esta profissão, ir para outra cidade, mudar novamente de amigos... ele estava lá!
Foi naquele ano que li "Memorial do Convento" e tive meu primeiro contato com um romance histórico.
Para conseguir assimilar as minhas dificuldades e lidar com meus sentimentos e conter a minha eterna sede de conhecimento, me joguei para dentro de uma história sobre a transposição de uma pedra gigante por caminhos incontáveis para atender à vaidade de um rei; histórias de bruxas queimadas, loucos que queriam voar e ver o sol... histórias de sonhos, amor, delírio, fantasia e verdade...
Dois anos depois José Saramago voltou a passar dias, tardes e noites comigo. Em meu primeiro ano de faculdade, enquanto eu descobria Bauru, a Unesp, fazia novos amigos, tentava tolerar as insuportáveis colegas de república (nunca fui muito boa nisso), li também "Ensaio sobre a cegueira".
No lugar menos visitado da casa, a sala de leitura com seu carpete vermelho e sofás de alvenaria sem almofadas, entendi a que ponto de intolerância, preconceito, falta de escrúpulos e amor pode chegar o ser humano.
Nestes momentos de grande solidão e mudanças da minha vida, éramos só eu e ele, Saramago.
Se eu superei tudo isso e como passei por estas fases, não importa. Importa é saber que mesmo depois de ter partido ele poderá me fazer companhia muitas outras vezes, sempre que eu precisar. 
No final do ano passado, sua 'Viagem do Elefante' me fez companhia em horas de alguma dor e alegria... um presente do Du no meu aniversário de 2009... Li o livro em duas, três noites, algo que odeio fazer... gosto de ficar com o livro por muito tempo...
Hoje, folheando novamente o livro - que Saramago dedica a Pilar, sua esposa e revisora , com o acréscimo de ' que não deixou que eu morresse' - encontrei estas observações:
"Com as boas ideias, e às vezes também com as más, passa-se o mesmo que se passava com os átomos de demócrito ou com as cerejas da cesta, vêm enganchadas umas nas outras"
"Somos, cada vez mais, os defeitos que temos, não as qualidades"
"É fácil de aceitar que um centímetro no mapa equivalha a vinte quilómetros na realidade, mas o que não costumamos pensar é que nós próprios sofremos na operação uma redução dimensional equivalente, por isso é que, sendo já tão mínima coisa no mundo, somos infinitamente menos nos mapas"
"As famílias felizes não têm história. Também os elefantes felizes não parece que a tenham"
"No fundo, talvez os homens e os elefantes não cheguem a entender-se nunca"
"Uma coisa boa que a ignorância tem é defender-nos dos falsos saberes"
E a minha preferida de "A Viagem do Elefante" por razões óbvias... mas óbvias só se você souber o que é um nariz de cera...
"... subhro pensou que tinha acabado de proferir uma frase estúpida, daquelas que poderiam ocupar um lugar de honra na lista dos narizes-de-cera"
"As ficções que contam, fazem-se com uma continuada dúvida a inquietação de saber que nada é verdade e ser preciso fingir que o é"

"Sobre o entendimento das coisas, até onde se pode, e aonde, a não ser por elas, não se chega"

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