Quando o escritor sul-africano J. M. Coetzee ganhou o Prêmio Nobel de
Literatura, em 2003, lá fui eu atrás de seus livros para saber o porquê da
premiação.
Na Biblioteca Mário de Andrade, aqui em Araraquara, encontrei "À
Espera dos Bárbaros", uma narrativa árida sobre uma sociedade totalitária
que espera apenas ser tomada pelos bárbaros, em uma referência clara ao
apartheid.
Mas descobri que o que dizem de Coetzee é verdade - ele nunca usa os mesmos recursos em sua obra.
"No Coração do País" - que não é uma história de flores e
pôr-do-sol - é o diário de uma jovem branca que vive no meio da região
desértica da África do Sul junto com o pai e os empregados negros da fazenda.
Sem ter com quem dividir seus desejos, vontades e idéias, ela transfere tudo
isso para o papel.
Ela se ressente muito do fato de ninguém notar que ela é tão
inteligente, tão inventiva e também transfere tudo isso para as páginas. Vai
criando histórias que, a certo ponto, o leitor não sabe se são verdadeiras.
Há passagens lindas em "No Coração do País", mas a que mais me
impressionou - e aí posso dizer que foi uma das coisas mais incríveis que já li
- é quando ela conta como foi estuprada por um dos funcionários da fazenda.
A cena é narrada cinco vezes consecutivas. Na primeira, uma explicação
dura e direta. Ela perdeu os sentidos e se lembra apenas do corpo batendo
repetidamente na madeira dura do chão.
Mas a narrativa vai ganhando ritmo e expressão. Na terceira narrativa,
ela já consegue falar dos cheiros, das reações do seu corpo. Até que na quinta
versão da mesma história a violência tem um tom quase consensual - ela está
deitada na própria cama, sabe que ele irá entrar e ela mesma tira o vestido.
Quando termina a seqüência, tem-se a impressão de que, na verdade, foram
cinco estupros, mas não. São cinco formas de ver a mesma coisa. Ou imaginar.
Porque nada garante que tudo isso não seja fruto da imaginação dela.
A todo o momento a personagem - cujo nome só se descobre quando faltam 50 páginas para terminar o livro - deseja que alguém, um homem, tome seu corpo. Mas acha que ninguém irá querer fecundar algo tão seco e duro.
A todo o momento a personagem - cujo nome só se descobre quando faltam 50 páginas para terminar o livro - deseja que alguém, um homem, tome seu corpo. Mas acha que ninguém irá querer fecundar algo tão seco e duro.
O fato é que o desenrolar dessa narrativa, o ritmo dela, vai deixando o
leitor louco, e você quer chegar ao final das cenas para saber se foram
ocasiões diferentes ou não, ou se ela está inventando tudo. É muito louco e
muito bom.
Pontos para o carrancudo Coetzee, que não dá entrevistas e odeia -
declaradamente, porque acho que todo escritor tem a mesma opinião sobre isso -
análises sobre sua obra.
Ah, sim, os livros mais comentados de Coetzee não são nem "No Coração do
País", nem "À Espera dos Bárbaros" - são "Desonra" e
"Vida e Época de Michael K". Ou pode ficar melhor ou eu discordo da visão geral porque acho que nenhum outro livro dele pode ser tão bom quando "No Coração do País". A impressão é que tenho que relê-lo em outros momentos da minha vida.
Para compartilhar um pouco dessa obra, seguem trechos preferidos:
" Eu sou a que fica no quarto, lendo, escrevendo ou combatendo enxaquecas.
As colônias estão cheias de moças assim, mas nenhuma, acredito, tão extremada
quanto eu."
"Estava ausente. E não sentiram minha falta. Meu pai não dá atenção a minha ausência. Para ele, tenho sido uma ausência na vida."
Para compartilhar um pouco dessa obra, seguem trechos preferidos:
"
"Estava ausente. E não sentiram minha falta. Meu pai não dá atenção a minha ausência. Para ele, tenho sido uma ausência na vida."
"É possível que tenhamos falado? Não, não podemos ter falado, devemos nos
ter afrontado em silêncio, a mastigar o decorrer do tempo."
"O tempo na fazenda é o tempo das vastidões, sem pequenezas.
Resolutamente me oponho ao tempo cego e subjetivo do coração com suas golfadas
de euforia e seus rojos de tédios: meu pulso tem o palpitar constante da
civilização."
"Mas que outra história existe sobre mim? O casamento com o segundo filho
do vizinho? Não sou uma camponesa feliz. Sou uma virgem negregada e miserável,
e minha história é minha história, mesmo que se trate de uma história grosseira
negra cega idiota miserável, ignorante de seu significado e de todas as suas
possíveis e inexploradas variantes. Eu sou eu. Caráter é destino. A história é
Deus. Rancor, rancor, rancor."
"A essência da servidão é a intimidade do servo com a imundície do amo."
"A essência da servidão é a intimidade do servo com a imundície do amo."
"Mas quem me dera ser meramente comum, ser uma herdeira comum e corrente,
plácida, oca, ansiosa por não morrer solteira, disposta a se confiar de corpo e
alma ao primeiro que passasse, até mesmo a um mascate ou um professor
itinerante de latim, e parir-lhe seis filhas, e suportar-lhes insultos e
pancadas com resignação cristã, e viver uma vida decente e obscura em vez de
apoiar-me no cotovelo e mirar-me no espelho numa atmosfera de crescente
melancolia e perdição, se é verdade o que me dizem meus ossos."
"Hendrik arranjou uma esposa porque já não é moço, porque não quer que
seu sangue desapareça da terra para sempre, porque passou a temer o cair da
noite, porque o homem não foi feito para viver sozinho."
"Nada sei de Hendrik. O motivo é que, durante todos esses anos que
passamos juntos na fazenda, ele permaneceu em seu lugar e eu mantive a
distância; e a combinação das duas coisas, permanecer em seu lugar e manter a
distância, fez com que meu olhar pousado nele e seu olhar pousado em mim tenham
sido sempre gentilmente incuriosos, remotos."
"As palavras são moeda. As palavras alienam. A linguagem não é o veículo
do desejo. O desejo é rapto, não troca. Só à medida que o aliena a linguagem o
domina."
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