sábado, 29 de março de 2014

Lições de vida em "A Tartaruga e a Boneca"

A literatura infantil é algo que eu amo, em que eu acredito e defendo. Adoro livros infantis e leio-os sempre que posso. É o começo de tudo. Nenhum adulto - poucos, talvez com muita sorte - será um leitor assíduo se não tiver um histórico de contato com os livros desde a infância. São eles que despertam a criança para a magia das histórias contadas por palavras em conjunto com belas imagens.

Tenho alguns livros preferidos, que considerava imbatíveis e um deles traz uma lição muito importante para qualquer pessoa, em qualquer fase de sua vida: é preciso estar atento aos sinais que vida nos dá. Muitas vezes, a felicidade está tão próxima, mas nos fechamos os olhos e a ignoramos. 


E, por acaso, foi o que aconteceu comigo e o livro "A tartaruga e a boneca" (Marcia Leite/Flavio Fargas). Ele ficou na pilha de novos livros para ler por um ano. Não sei porque não havia lido antes e não sei porque li, em meio a tantos outros disponíveis.
Tenho pra mim que um bom livro infantil começa na apresentação de seus autores. A descrição que cada um faz de si já indica a qualidade do conteúdo. Este não foge à minha regra.

O livro publicado pela editora mineira Autêntica, que tem um histórico de boas publicações - quem gosta de turismo, belas imagens e culinária regional, por exemplo, tem de ver "Do doce ao sal” - conta a história de uma boneca que cai no mar durante um passeio de barco com a sua dona. Uma grande tartaruga a encontra. Além de evitar que ela se machuque, a tartaruga sai com ela em busca daqueles que a perderam.

Anos e anos se passam e a boneca continua alimentando a esperança de reencontrar sua menina e voltar a ser feliz. Ela está desgastada pela ação do tempo, a tartaruga já não tem mais a mesma agilidade - se é que se pode dizer assim -, mas ela não desiste. Até que um dia, algo a faz entender que sua verdadeira dona é outra, há muito tempo.

Nestas buscas, a história mostra de forma metafórica e muito delicada como dois seres completamente diferentes podem viver uma relação de harmonia, amor, amizade e companheirismo se não houver pré-julgamentos, preconceito e falta de respeito.

Os tons das ilustrações tornam a narrativa ainda mais suave e envolvente. Não há quem não queira estar lá, em alto mar ou à beira-mar, com a tartaruga e a boneca, longe da vida de encontros e desencontros e pessoas estranhas.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Devia olhar o rei, mas foi o escravo que chegou...

Além de ser uma descoberta por si só, o livro "As Mulheres do Meu Pai", do angolano José Eduardo Agualusa (Editora Língua Geral) - ele consta nas listas de melhores livros para se dar de presente - também teve a felicidade de me apresentar à poeta angolana Ana Paula Tavares nos idos de 2004.

Lá no meio da h
istória, um dos personagens cita o poema "As Mulheres de Meu Pai", que eu mesma poderia e adoraria ter escrito, se tivesse talento para tanto. Sendo assim, salve quem pode mais! E eu fui procurar outras coisas sobre essa historiadora e mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Ana Paula Tavares tem poesias publicadas em jornais e revistas do Brasil, Canadá, Suécia e Alemanha, mas sua obra também poder ser encontrada nos livros de poesia "Ritos de Passagem", “O Lago da Lua", "Dizes-me coisas amargas como os frutos" e "Ex-votos" e no livro de prosa "O Sangue de Buganvília".
Abaixo, o poema que me encantou e outras descobertas.

DEVIA OLHAR O REI
Devia olhar o rei
Mas foi o escravo que chegou
Para me semear o corpo de erva rasteira
Devia sentar-me na cadeira ao lado do rei
Mas foi no chão que deixei a marca do meu corpo
Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do eu cabelo
O escravo era novo
Tinha um corpo perfeito
As mãos feitas para a taça dos meus seios
Devia olhar o rei
Mas baixei a cabeça
Doce, terna
Diante do escravo.

TALVEZ ME ENCONTRES
Talvez me encontres
Na décima curva do vento
Molhada ainda do sangue das virgens do sacrifício
Por entre a febre
A arder
De onde eu venho empresta-se o corpo à casa
a memória ao tecto onde pinga a chuva
como se fosse agora como se fosse sempre
De onde eu venho nascem os rios
nos nervos da terra
correm certos para o mar ou
perdem-se noutros lugares do tempo
sem que ninguém
os detenha
aí lavam as raparigas seus primeiros sangues
lentas mulheres preparam a farinha
e cada gesto funda
o mundo todos os dias
há velhas mulheres pousadas sobre a tarde
enquanto a palavra salta o muro e volta com um sorriso tímido de dentes e sol.

O LAGO DA LUA
No lago branco da lua 
lavei meu primeiro sangue 
Ao lago branco da lua 
voltaria cada mês 
para lavar 
meu sangue eterno 
a cada lua
No lago branco da lua 
misturei meu sangue 
e barro branco 
e fiz a caneca 
onde bebo 
a água amarga da minha sede sem fim 
o mel dos dias claros 
Neste lago deposito 
minha reserva de sonhos para tomar

MUKAI
(Mulher à noite)
Um soluço quieto 
desce 
a lentíssima garganta 
(rói-lhe as entranhas 
um novo pedaço de vida) 
os cordões do tempo 
atravessam-lhe as pernas 
e fazem a ligação terra.
Estranha árvore de filhos 
uns mortos e tantos por morrer 
que de corpo ao alto 
navega de tristeza 
as horas.

DEIXA AS MÃOS CEGAS

Deixa as mãos cegas
Aprender a ler o meu corpo
Que eu ofereço vales
curvas de rio
óleos
Deixa as mãos cegas
Descer o rio
Por montes e vales
Deixa a mão pousada na duna
Enquanto dura a tempestade de areia
A sede colherá o mel do corpo
Renasceremos tranquilos
De cada morte dos corpos
Eu em ti
tu em mim
O deserto à volta

quinta-feira, 27 de março de 2014

Afinal, quem descobriu o Brasil?

Ontem à noite presenciei uma conversa entre um senhor de uns 65 anos e sua neta de 10 que me mostrou claramente os conflitos e  transformações da educação em um país colonizado e que ainda luta para se livrar das amarras ideológicas implantadas por seus "senhores". 



Há mais de 20 anos, quando eu estava nos primeiros anos de escola e mais tarde também, no colegial, os professores de História tratavam a chegada dos portugueses ao Brasil como uma descoberta. Desconsideravam o fato de que este não era um lugar vazio e desabitado. Havia gente, mais de cinco milhões de pessoas na verdade, nestas terras continentais. Mas ninguém dava os créditos a quem por direito deveria ocupar tudo isso até hoje, mas precisa lutar e derramar sangue para conseguir um lugar ínfimo para viver. Pouco se falava sobre chacinas e dizimação de povos.




Mas parece que algo nesta história tem mudado. Assim como a história da comunidade afrobrasileira tem sido mostrada, compreendida e contada de outra forma desde a lei 11.645, de 2008, a das nações indígenas também ganhou um novo verso nos últimos seis anos. A julgar pela conversa entre avô e neta, resta, um buraco entre as gerações e a forma como aprenderam sobre o assunto. 

Inicialmente, não entendi muito bem do que se tratava a conversa entre eles, mas como a menina estava agitada, falante e desafiando o avô, me prendi em seu comportamento. O avô percebeu e se voltou a mim, dizendo: "Está difícil fazer essa menina entender que foi Pedro Álvares Cabral que descobriu o Brasil". Eu sorri e disse: "É? Mas por quê?". "Porque ela fala que foram os índios que descob
riram o Brasil, você acredita?".



Rapidamente, a mocinha se explica, olhando para mim. "Mas foram os índios. O Brasil era terra indígena quando os portugueses chegaram aqui" (sim, ela usou essas palavras, para meu assombro!!).

Sem nem pensar, eu disse. "Você está certa, é isso mesmo. Eles vieram até aqui, mas já tinha muita gente morando no País".


"Então, eu disse isso, mas o meu avô não acredita".


O avô volta à conversa me falando "está vendo, ela está aprendendo tudo errado". E ela ataca novamente. "Eu estou certa". Ele responde: "Não, filha, os portugueses descobriram o Brasil. 
Quando tinha índio aqui não se chamava Brasil". 



Muito ágil, ela explica a ele que o nome não importa, o lugar era o mesmo e já tinha dono.
A conversa terminou com a pequena propondo uma aposta entre eles. Ela ia provar que estava certa e ele teria que dar a ela R$ 20. Se ele estivesse certo, ela daria a ela R$ 50.


Dos projetos que nasceram a partir da lei 11.654 destaca-se o site Índio Educa (http://www.indioeduca.org/), espaço que dá suporte ao ensino sobre etnias e tribos brasileiras com textos - todos eles - escritos por indígenas e que merece ser conhecido e divulga. 


Por ora, fica aqui a minha homenagem aos professores e professoras dessa menina que estuda no 5º ano da Escola Jarnira Nery Gatti, no Jardim Imperador, em Araraquara.

segunda-feira, 24 de março de 2014

O Menino Zé Luís!

Durante os últimos dias, me deparei com várias situações em que poderia ter adotado um novo cãozinho, mas isso não se concretizou por uma razão que agora está muito clara para mim. Este lugar já tinha dono, era só uma questão de tempo para ele chegar.Por duas vezes, fomos à comunidade terapêutica Associação Amigos da Vida e convidei a linda Cacau para vir embora. Ela não quis. Preferiu ficar com seus amigos na chácara, onde está sendo muito bem cuidada, só para registro. 


No meio da semana, quase atropelei um pequeno ao ir trabalhar. Ele estava no meio da pista comendo restos de comida. Dei ração para ele, ele comeu e fugiu quando eu tentei resgatá-lo e levá-lo para a casa. Cheguei a mobilizar uns 15 trabalhadores da obra na rodovia, mas ele se esquivou de todos e foi embora. Fiquei preocupada, com dor no coração porque percebi que ele não sabia se virar na rua. Enquanto eu pegava ração para ele, quase foi atropelado por um caminhão e um ônibus.
Mas aí surgiu no caminho um menino abrigado no estacionamento de um condomínio na Vila Xavier. Ele estava lá sendo alimentado e cuidado por uma moradora, a Cris, que não mediu esforços para ajudar a encontrar um lar para ele. Três pessoas apareceram interessadas nele, mas uma desistiu, a outra não pareceu de confiança e a terceira... bem, esta ficou esperando por ele. (Me desculpe, Dona Marilda!)

Inicialmente, como ele já tinha dono, me dispus a dar banho e cuidar do Menino até ele poder ser levado ao lar definitivo. Com a Mel em tratamento sabe-se deus até quando, não poderíamos dar os cuidados médicos necessários a um novo filho, por isso ele ficaria temporariamente em casa.

O problema é que logo me apaixonei por ele. Quando chegamos na casa da Cris, o Menino veio até mim, eu estava sentada na calçada, e ele pôs as patas nos meus ombros e me lambeu a cara. Foi tanto amor... Ele foi quietinho para a casa no colo do Khal. Lá, se assustou com as cheiradas das filhas e com a água do banho. Mas só por um tempo. Logo estava deitado no chão do banheiro enquanto limpávamos suas orelhas debaixo d’água.

Fiquei pensando se seu dono definitivo faria isso
por ele ou se ele seria mais um cachorro no quintal. Pensei que ele se parecia com um dos cachorros do meu pai, que também foi escolhido por ele no Centro de Zoonoses. Boquita havia sido atropelado, foi salvo na rua todo quebrado e quando viu meu pai correu para um carinho. Ele escolheu o meu pai e ganhou um lar com muito amor.


Também pensei que sábado era dia do segundo aniversário do meu pai – dia do registro de nascimento dele – e que aquilo tudo só podia ser um sinal. Mas nós continuávamos sem condições de levá-lo ao veterinário para dar as vacinas, vermífugos e fazer a castração.

Em pouco tempo, Menino, agora chamado de Zé Luís, já estava correndo pelo quintal, dormindo na caminha da Mel e nos tratando com muito carinho e alegria.  Em um dado momento, Khalfani me diz: “Preciso me concentrar em outra coisa, porque vai ser difícil deixá-lo ir embora. Já estou apaixonado por ele”.

Como se precisássemos de mais um incentivo, a Cris me diz que gostaria que nós ficássemos com o Menino. Quando relatei a ela nossa dificuldade em dar a ele o tratamento merecido,  eis que surge mais um bom coração nessa história. A Beth.

Para ficarmos com o Zé Luís, a Beth o apadrinhará com vacinas, vermífugo, castração e consulta médica!! Um anjo!! Uma felicidade enorme podermos ficar com esse menino tão especial, que já transformou a nossa vida, antes já transformada de tantas formas diferentes pela Mel, Juana e Xuxinha, todas elas abandonadas e adotadas por nís.

Tem gente que vai dizer que isso é tudo culpa da minha codependência, que me faz acreditar que posso salvar o mundo do abandono e que sem mim ninguém pode viver bem, mas eu prefiro acreditar que isso é fruto do nosso amor infinito pelos cães. Herança da minha mãe, do meu pai e dos meus tios Rosely e Cai. Não me lembro de nenhum período sem cachorro em nenhuma das casas. E me lembro de como era o clima de tristeza quando alguma cão se feria ou partia. Na época, ainda criança, não entendia o desespero da minha mãe, mas hoje compreendo isso completamente. E partilho dele.



Mas, por ora, vou viver a felicidade de ter mais um filho canino, que já se mostra um companheiro incondicional. Zé Luís, seja bem-vindo à nossa vida! 

sexta-feira, 21 de março de 2014

O amor, a dor e a esperança de Florbela Espanca

Dias atrás, fiz uma postagem com meu poema preferido da escritora portuguesa Florbela Espanca. Percebi que muitos amigos não a conheciam, apesar de serem leitores com bom repertório. Eu a conheci graças à coleção Pocket da editora L&PM, um livrinhos de poesias dela comprado em uma estação do metrô de São Paulo, entre uma viagem de outra de Bauru a Peruíbe, nos idos anos 1990.Leio e releio, e gosto cada vez mais. Hoje, trago outros três textinhos dela. E um pouco de sua história. 


Florbela nasceu na Vila Viçosa, no Alentejo, em Portugal, em 1894, filha de João Maria Espanca com a empregada da família, Antónia da Conceição Lobo.

Como rebento ilegítimo, sua certidão traz “pai incógnito”, mas quando ficou órfã, aos 14 anos, passou a ser criada e educada pelo pai e a madrasta.  Os pais de Florbela ainda tiveram um segundo filho, Apeles, nascido três anos depois dela.
Cursou Letras e Direito em Lisboa depois de casada pela primeira vez, passou por três divórcios e muitas decepções amorosas, todas elas relatadas em seus textos nascidos no Simbolismo. 

Escreveu para jornais e revistas, entre eles o diário Portugal Feminino, e tem mais livros publicados postumamente do que em vida.

Teve muitos problemas psicológicos, sofreu demais com a perda do irmão em um acidente de avião e acabou morrendo no dia 08 de dezembro – o mesmo de seu nascimento – em 1930, com apenas 36 anos.
Suas poesias falam da dor de existir, dos dissabores do amor, de solidão e da esperança de um dia ser plenamente feliz. 

“Amar”
Eu quero ama, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além... 
Mais este e aquele, o outro e a toda gente... 
Amar! Amar! E não amar ninguém! 
Recordar? Esquecer? Indiferente!... 
Prender ou desprender? É mal? É bem? 
Quem disse que se pode amar alguém 
Durante a vida inteira é porque mente! 
Há uma primavera em cada vida: 
É preciso cantá-la assim florida, 
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar. 
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada 
Que seja a minha noite uma alvorada, 
Que eu saiba me perder... pra me encontrar...

"Exaltação"
Viver! Beber o vento e o sol! 
Erguer Ao Céu os corações a palpitar! 
Deus fez os nossos braços pra prender, 
E a boca fez-se sangue pra beijar! 
A chama, sempre rubra, ao alto, a arder!... 
Asas sempre perdidas a pairar, 
Mais alto para as estrelas desprender! 
A glória! A fama! O orgulho de criar! 
Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas, 
Nos meus beijos extáticos, pagãos! 
Trago na boca o coração dos cravos! 
Boémios, vagabundos, e poetas:
- Como eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!

"Voz que se cala"
Amo as pedras, os astros e o luar 
Que beija as ervas do atalho escuro, 
Amo as águas de anil e o doce olhar 
Dos animais, divinamente puro. 
Amo a hera, que entende a voz do muro 
E dos sapos, o brando tilintar 
De cristais que se afagam devagar, 
E da minha charneca o rosto duro. 
Amo todos os sonhos que se calam 
De corações que sentem e não falam, 
Tudo o que é Infinito e pequenino! 
Asa que nos protege a todos nós! 
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!

quarta-feira, 19 de março de 2014

O Amor nos Tempos do Cólera: minha história de amor preferida

Este texto foi escrito em abril de 2012, para o blog Paulo Coelho Não é Literatura!. Descobri que posso gostar do que escrevo depois de passados alguns anos. Só faltou dizer que também gostei muito da trilha com a Shakira!. Boa leitura!




Por cinco anos, eu relutei em ver o filme que adaptava para o cinema a obra literária "O Amor nos Tempos do Cólera", de Gabriel García Márqu
ez. Por princípio. Porque as limitações de um não vão nunca contemplar toda a amplidão do outro. E, assim, é impossível o produto do cinema ser melhor ou tão abrangente que o produto da literatura. Gritem, rosnem, me atirem pedras. Quem ama a literatura e só aprecia o cinema vai concordar comigo. Mas, também, se não concordar, paciência.


Em um momento anterior, neste blog, escrevi sobre "O Leitor" e, sim, disse que gostei muito mais do filme do que do livro. O primeiro me tocou, me em
ocionou. Fui ao segundo e me decepcionei. Mas, neste caso, os elementos que encorparam o filme é que deram à narrativa os elementos mais fortes dessa história entre um jovem apaixonado por uma mulher misteriosa e a ligação entre eles a partir palavra escrita que ela só descobriu na vida adulta.

Voltando a Gabriel García Márquez, acabei me rendendo ao filme porque não aguentei de curiosidade sobre o que afinal fizeram com minha história de amor preferida. Armada de gritos e protestos, acabei em lágrimas. Porque o roteirista deve também amar esta história e não quis corrompê-la.

Mesmo com atores badalados e o pior dos piores crimes - ninguém falava espanhol no filme e todos tinham sotaques bizarros, do tipo ator carioca da novela da Globo falando com sotaque nordestino -, o filme não teve ares hollywoodianos. As pessoas são bonitas, mas não são perfeitas, os velhos são velhos, não são azeitonas com algumas rugas; as cenas são quentes e úmidas o bastante para se ter uma impressão de forte calor, sujeira e morosidade. Enfim, não é um castelo no Monte Olimpo.


O mais importante é que o conjunto de cenas foi capaz de mostrar a grandeza do amor do Florentino Ariza por Fermina Daza. Mesmo com suas 600 mulheres, ele separou sexo de amor e todos os outros elementos sublimes de que esse sentime
nto vem acompanhado e que preenche o ser humano - dedicação, esperança, força, esmero, presença. E, por outro lado, como a falta de amor pode tornar uma pessoa vazia de propósitos e cheia de mágoas, dores, ressentimentos, interesses vis.

Lamentavelmente, o diretor teve pudores e tirou dos diálogos uma das minhas frases preferidas e parte de uma delas. 


"Convenceu-a de que a gente vem ao mundo com as trepadas contadas, e as que não se usam por qualquer motivo, próprio ou alheio, voluntário ou forçado, se perdem para sempre" caberia no contexto, mas não passou perto do filme nessas palavras. 

Mais ao fim, Fermina pergunta a Florentino: "Até quanto tempo o senhor acha que podemos ficar nesse ir e vir do caralho?" A que ele responde: "Por toda a vida". O diretor preferiu suprimir o palavrão.


Florentino diz a Fermina que chegou o momento de pensarem no que fazer com o amor que acumularam durante toda a vida e que ficou sem dono. 

E o desfecho: "Depois de 54 anos, sete meses, onze dias e noites, meu coração finalmente se realizou. E eu descobri, para a minha alegria, que é a vida e não a morte, que não tem limites."

Lendo o livro, vendo o filme, dá até para acreditar que é possível. E que o amor não acontece apenas para poucos. 








sábado, 15 de março de 2014

Aquela que no mundo anda perdida...



Lá no facebook, 
o nosso novo orkut graças ao mau uso alheio, surgiu um tal de desafio da poesia... Umas cinco pessoas me marcaram, não respondi nenhuma... Mando por aqui o meu recado que não é meu, mas é tão eu, se é que me entendem... 

Eu
(Florbela Espanca)

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ... 

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ... 

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ... 

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou! 


sexta-feira, 14 de março de 2014

"O Menino do Pijama Listrado"


Como todo apaixonado por livros e apenas fã de cinema, sempre acho que uma obra literária é melhor que o produto cinematográfico. Porque o livro é mais profundo, os atores nunca estão à altura do personagem, faltam histórias paralelas importantes, e por aí vai. Porém, há os casos - aquelas exceções que confirmam as regras - em que os filmes se superam ou estão pelo menos no mesmo patamar do livro.


Um dos casos é "O Auto da Compadecida", mas, venhamos, é um texto de teatro que a Globo fez em série teatral e juntou os pedaços para um filme. Acho que nem conta.

Outro caso é "O Leitor". Para o filme e o livro fiz dois posts anos atrás, que posso publicar por aqui mais tarde. Isso é realmente um caso atípico na minha vida. Amo de paixão o filme e só li o livro porque causa dele. No entanto, os méritos da obra pela qual me apaixonei são todos do diretor e do roteirista. Um 
obra baseada em, não uma adaptação.

Agora, novamente, faço esse caminho inverno para ler "O Menino do Pijama Listrado", de John Boyne (Cia das Letras), que, assim como "O Leitor", trata do Holocausto com uma história paralela comovente.

No caso do "Menino", a inocência do personagem do filme toma conta da história toda e o desfecho trágico me impactaram. Quero ver se esses mesmos aspectos estão no texto. Vou apostar que sim, e que lá tem mais.

Pensando nesse filme e por conta de uma confusão na mente do meu marido, me lembrei de "A Vida é Bela", de Roberto Begnini. Não suporto. Forçado, chato, barato.Vi para agradar minh
a amiga Renata Martins, louca pelo Oscar, que não poderia ver aquela cerimônia nos idos da década de 1990 sem poder comparar os concorrentes. Não sei se fiquei mais irritada vendo o filme ou a premiação. 

"Menino"
é diferente, é realmente doce, singelo, mais próximo do real. O universo paralelo do menino deve ter sido construído por muitos outros filhos dos seguidores de Hitler, enquanto eles disfarçavam as motivações e a extensão de seus atos.

Mas, como a vida surge um dia e resolve mostrar quem manda nisso tudo, um dia essa barreira se desprende e não é mais possível disfarçar.

Estou ansiosa por começar essa leitura. Antes, tenho que me desprender de "Os Trabalhadores do Mar", do querido e irônico Victor Hugo. 
Até lá!

sexta-feira, 7 de março de 2014

Mudanças......



Quando era criança, vivia em um lugar onde tudo era estático. A escola, os amigos, a casa, a cidade eram sempre os mesmos. E isso me incomodava. Nada de novo acontecia para movimentar o dia. Um professor que vinha de outra cidade, um novo aluno, uma bomba, uma tragédia. Nada.

E dentro de mim o desejo de mudança era latente. O que me libertava e transformava o meu mundo em algo maior eram os livros, com suas grandes aventuras, viagens pelo mundo, monstros, espíritos, foguetes, balões, amores sem fim.

Morria de inveja de um dos meus amigos que, por conta da profissão do pai, mudava de cidade com muita frequência. Na minha cabeça, o Beto era um cara de muita sorte. Quando me deparei com a primeira grande mudança em minha vida, no final dos anos 90, ainda na adolescência, me vi apavorada com a possibilidade de me distanciar dos meus amigos e, aos poucos, perder contato com eles. Mas, só por ora. 


Na faculdade, morei em quatro casas diferentes e as mudanças sempre me motivavam. Jogar coisas fora, reorganizar a vida, parecer e ser diferente. Em oito anos em Araraquara foram seis residências diferentes, sendo que as duas últimas mudanças foram separadas por um período de três meses.
A escolha da profissão também provocava esses mesmos anseios: no jornalismo, nada é igual todo dia, eu pensava. Se nos primeiros três anos fazer matérias parecidas ainda não me incomodar, depois disso é o vai e vem de horários e cargos que não vai me deixar dormir todo dia no mesmo horário. Mesmo com a rotina de trabalho imposta pelos métodos alheios. Sim, tem gente que quer engessar o jornalismo, e faz tempo.

Mas essa f
alta de limites, horários, regras na minha vida, criadas por mim para não ser igual nunca - e antes, por meus pais que nunca tiveram hora para nada em casa - me tornaram uma pessoa completamente desorganizada.
E chegou um momento na minha vida que tudo o que eu queria é que ela fosse igual, por longos períodos. Tudo o que eu queria era poder fazer planos e, quando chegasse a hora, meses depois, eles pudessem se concretizar porque a minha vida podia sim ser organizada. 

Nessa tentativa de me disciplinar, nesses últimos quatro anos, e viver a monotonia e não o caos, todas as mudanças de rumo e ritmo me fizeram mal. Descobri que agora as mudanças me desgastam, me desorientam, me bagunçam por dentro por um tempo longo. E até conseguir reencontrar um novo lugar, para meu assombro, tudo começa a mudar novamente.

É como aquelas piadinhas sem graça da vida que resolve realizar seus desejos depois que você já perdeu as esperanças e se conformou com o que tinha. É como os sarcasmos do destino, que faz o que quer e quando quer, ignorando as vontades de sua vítima. É como uma gargalhada sonora dos deuses que você tanto atormentou para que a vida fosse renovada a cada dia... Bem feito pra mim!! Pensasse bem antes de implorar tanto!!


Muda-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

                         ( Luís de Camões)

quarta-feira, 5 de março de 2014

As dores da noite

A noite sempre exerceu um grande fascínio sobre mim. Sempre soube que podia viver à noite e hibernar durante o dia. Mas o silêncio que nasce quando a luz acaba também transforma a dimensão das coisas. À noite, conversas corriqueiras se transformam em discussões, uma implicância ganha fôlego e acaba em um grande problema, as dores são sempre mais intensas... Dentro da minha cabeça, o monstro vai ganhando formas e se tornando real, de repente
o sono desaparece, o cérebro não pára mais de funcionar, o peito sufoca. Só vai passar quando a luz chegar.

Em uma passagem de "Jangada de Pedra", os cinco peregrinos também sofreram com a transformação para pior provocada pela noite. Após um desentendimento entre o grupo, o narrador convoca o Criador para explicar essas distorções provocadas pela luz.

"À luz do dia todos os enredos têm muita menos importância. Deus, o mais ilustre dos exemplos, criou o mundo porque era noite quando se lembrou disso, sentiu naquele supremo instante que não podia aguentar mais as trevas. Fosse ele dia e Deus teria deixado ficar tudo como estava. E como este céu daqui amanheceu livre e descoberto, e o sol surgiu sem impedimento de nuvens, e assim se conservou, as filosofias nocturnas dissiparam-se."

E quando a luz do sol não é suficiente para resolver os problemas criados durante a noite, só um fenômeno da natureza para salvar o dia.

"Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira, pensamentos tanto, tomamos balanço e hesitamos, depois voltamos ao princípio, tornamos a pensar e a pensar, deslocamo-nos nas calhas do tempo com um movimento circular, como os espojinhos que atravessam o campo levantando poeira, folhas secas, insignificâncias, que para mais não lhes chegam as forças. Bem melhor seria vivermos em terra de tufões."

Segundo Saramago, as explicações são duas. "Tudo isso aconteceu antes de ter sido colocado aqui o inferno". "O homem põe, o cão dispõe".