sexta-feira, 28 de março de 2014

Devia olhar o rei, mas foi o escravo que chegou...

Além de ser uma descoberta por si só, o livro "As Mulheres do Meu Pai", do angolano José Eduardo Agualusa (Editora Língua Geral) - ele consta nas listas de melhores livros para se dar de presente - também teve a felicidade de me apresentar à poeta angolana Ana Paula Tavares nos idos de 2004.

Lá no meio da h
istória, um dos personagens cita o poema "As Mulheres de Meu Pai", que eu mesma poderia e adoraria ter escrito, se tivesse talento para tanto. Sendo assim, salve quem pode mais! E eu fui procurar outras coisas sobre essa historiadora e mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Ana Paula Tavares tem poesias publicadas em jornais e revistas do Brasil, Canadá, Suécia e Alemanha, mas sua obra também poder ser encontrada nos livros de poesia "Ritos de Passagem", “O Lago da Lua", "Dizes-me coisas amargas como os frutos" e "Ex-votos" e no livro de prosa "O Sangue de Buganvília".
Abaixo, o poema que me encantou e outras descobertas.

DEVIA OLHAR O REI
Devia olhar o rei
Mas foi o escravo que chegou
Para me semear o corpo de erva rasteira
Devia sentar-me na cadeira ao lado do rei
Mas foi no chão que deixei a marca do meu corpo
Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do eu cabelo
O escravo era novo
Tinha um corpo perfeito
As mãos feitas para a taça dos meus seios
Devia olhar o rei
Mas baixei a cabeça
Doce, terna
Diante do escravo.

TALVEZ ME ENCONTRES
Talvez me encontres
Na décima curva do vento
Molhada ainda do sangue das virgens do sacrifício
Por entre a febre
A arder
De onde eu venho empresta-se o corpo à casa
a memória ao tecto onde pinga a chuva
como se fosse agora como se fosse sempre
De onde eu venho nascem os rios
nos nervos da terra
correm certos para o mar ou
perdem-se noutros lugares do tempo
sem que ninguém
os detenha
aí lavam as raparigas seus primeiros sangues
lentas mulheres preparam a farinha
e cada gesto funda
o mundo todos os dias
há velhas mulheres pousadas sobre a tarde
enquanto a palavra salta o muro e volta com um sorriso tímido de dentes e sol.

O LAGO DA LUA
No lago branco da lua 
lavei meu primeiro sangue 
Ao lago branco da lua 
voltaria cada mês 
para lavar 
meu sangue eterno 
a cada lua
No lago branco da lua 
misturei meu sangue 
e barro branco 
e fiz a caneca 
onde bebo 
a água amarga da minha sede sem fim 
o mel dos dias claros 
Neste lago deposito 
minha reserva de sonhos para tomar

MUKAI
(Mulher à noite)
Um soluço quieto 
desce 
a lentíssima garganta 
(rói-lhe as entranhas 
um novo pedaço de vida) 
os cordões do tempo 
atravessam-lhe as pernas 
e fazem a ligação terra.
Estranha árvore de filhos 
uns mortos e tantos por morrer 
que de corpo ao alto 
navega de tristeza 
as horas.

DEIXA AS MÃOS CEGAS

Deixa as mãos cegas
Aprender a ler o meu corpo
Que eu ofereço vales
curvas de rio
óleos
Deixa as mãos cegas
Descer o rio
Por montes e vales
Deixa a mão pousada na duna
Enquanto dura a tempestade de areia
A sede colherá o mel do corpo
Renasceremos tranquilos
De cada morte dos corpos
Eu em ti
tu em mim
O deserto à volta

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