quarta-feira, 5 de março de 2014

As dores da noite

A noite sempre exerceu um grande fascínio sobre mim. Sempre soube que podia viver à noite e hibernar durante o dia. Mas o silêncio que nasce quando a luz acaba também transforma a dimensão das coisas. À noite, conversas corriqueiras se transformam em discussões, uma implicância ganha fôlego e acaba em um grande problema, as dores são sempre mais intensas... Dentro da minha cabeça, o monstro vai ganhando formas e se tornando real, de repente
o sono desaparece, o cérebro não pára mais de funcionar, o peito sufoca. Só vai passar quando a luz chegar.

Em uma passagem de "Jangada de Pedra", os cinco peregrinos também sofreram com a transformação para pior provocada pela noite. Após um desentendimento entre o grupo, o narrador convoca o Criador para explicar essas distorções provocadas pela luz.

"À luz do dia todos os enredos têm muita menos importância. Deus, o mais ilustre dos exemplos, criou o mundo porque era noite quando se lembrou disso, sentiu naquele supremo instante que não podia aguentar mais as trevas. Fosse ele dia e Deus teria deixado ficar tudo como estava. E como este céu daqui amanheceu livre e descoberto, e o sol surgiu sem impedimento de nuvens, e assim se conservou, as filosofias nocturnas dissiparam-se."

E quando a luz do sol não é suficiente para resolver os problemas criados durante a noite, só um fenômeno da natureza para salvar o dia.

"Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira, pensamentos tanto, tomamos balanço e hesitamos, depois voltamos ao princípio, tornamos a pensar e a pensar, deslocamo-nos nas calhas do tempo com um movimento circular, como os espojinhos que atravessam o campo levantando poeira, folhas secas, insignificâncias, que para mais não lhes chegam as forças. Bem melhor seria vivermos em terra de tufões."

Segundo Saramago, as explicações são duas. "Tudo isso aconteceu antes de ter sido colocado aqui o inferno". "O homem põe, o cão dispõe".

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